terça-feira, 9 de outubro de 2007
A PROVA DE BRUXELAS
À primeira vista, é um caso de esquizofrenia. A mesma União Europeia que, “heroicamente” há menos de dois anos, foi a vanguarda do combate pela Convenção da Unesco sobre a diversidade cultural, tenta no presente um reenquadramento dos sistemas nacionais de ajudas ao cinema que as enfraquece consideravelmente. O objectivo da Comissão Europeia é simplesmente tornar compatíveis os programas de ajuda dos estados membros às suas produções cinematográficas com as regras de concorrência pura em vigor no mercado único europeu. Coisa complicada, pois existem mais de 600 mecanismos de apoio ao cinema nos 27 países da União...Bruxelas realça sobretudo o “território nacional” de algumas medidas, que obriga o produtor do filme a gastar parte do seu orçamento no país que o apoiou. Na procura de uma maior eficácia, a Comissão não esconde o seu desejo de uma “territorilização nacional” dos apoios. Porque isso, assegura, tornará mais fácil as co-produções num mercado menos fragmentado.
Nestes tempos de incerteza, é dizer pouco que a “Comunicação sobre a Cultura”, documento assinado pela Comissão Europeia de 2007, foi acolhido com frieza. A Comissão reafirma dois princípios-chave. Primeiro, a política cultural incumbe aos estados membros. Segundo, existe, em relação aos apoios à indústria, uma especificidade do campo cultural que lhe permite não cumprir as estritas regras da concorrência. Formulada pela primeira vez no tratado de Maastricht (1992), a precisão é vital: “Podem ser consideradas compatíveis com o mercado comum (...) os apoios destinados a promover a cultura e a conservação do património, quando não alterem as condições das trocas e da concorrência na Comunidade em medidas contrárias ao bem comum.” O artigo 87 permitiu salvaguardar as ajudas públicas ao cinema em todo o espaço europeu durante anos.
Mas não nos deixemos enganar. Esta declaração de intenções foi adoptada por proposta da direcção geral da Cultura, representada pelo comissário eslovaco Jan Figel. Isso não quer dizer que os comissários da concorrência (Neelie Kroes) e dos Media (Viviane Reding), que também tinham uma palavra a dizer sobre o dossier, partilhassem a mesma opinião. A Comissão Europeia não é , de facto, um governo. Cada comissário tem uma autonomia proporcional ao seu peso político e... como é de calcular, o comissário da Cultura não é seguramente dos maiores.
A situação não foi sempre tão límpida. Quando em 1998 Bruxelas deu novamente o seu aval ao sistema de apoios, estes foram julgados compatíveis com o mercado comum porque o cinema é uma indústria cultural. Três anos depois, a reflexão “afina-se”. Numa “Comunicação sobre o Cinema” publicada em 2001, e confirmada em 2004, Bruxelas fixa quatro critérios à autorização de apoios: a ajuda deve ser destinada a um “produto cultural” (a apreciação do que é um “produto cultural” é deixada aos Estados); o apoio financeiro não deve exceder 50% do orçamento total do filme, exceptuando-se os orçamentos muito pequenos; os suplementos para certas prestações técnicas são formalmente proibidos; por fim, o critério mais discutido , ligado às “clausulas de territorialização”, segundo o qual os Estados não estão autorizados a impor a um produtor que gaste no seu território, em troca dos apoios, mais de 80% do orçamento da obra. “Em 1998, a decisão da autorização dos apoios franceses ocupava uma quinzena de páginas. Em 2006, a decisão sobre o conjunto do sistema ocupa 160. Isto prova que nestes anos a Comissão desenvolveu muito mais detalhadamente o mecanismo dos apoios, numa base mais sofisticada. Provocando um efeito de bala: onde poderia mostrar-se mais tolerante, torna-se mais exigente”, inquieta-se Xavier Merlin, director dos Negócios Europeus e Internacionais do CNC francês.
E tudo indica que as coisas vão piorar. Novo exemplo do voluntarismo de Bruxelas são os “testes culturais”, aplicados em vários países desde o fim de 2006.
Em Cannes, este ano, as agências nacionais de cinema europeias denunciaram o risco da generalização destes testes, que “levará à adopção de uma definição muito restritiva de cultura e cinema”, defendendo ainda, a uma só voz (coisa impensável há anos atrás!), “a actual configuração dos apoios”. Estas reuniões, que desde 2003 se tornaram trianuais (Berlim + Cannes + San Sebastian ou Veneza), podem, e devem, tornar-se foco de reflexão ambicioso. Actualmente contra a política da Comissão Europeia.
Só por curiosidade... já tinham ouvido, ou lido, alguma coisa sobre isto, por cá?
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Fontes Pereira de Melo
Publicado em "A Página da Educação", edição de Outubro de 2007
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