O artigo que a seguir se transcreve é da autoria de Mário Soares e foi publicado no jornal "El Pais" do passado dia 1.
Não deixa de ser curioso que o Partido Socialista, o seu secretário-geral e actual primeiro-ministro, José Sócrates, e demais figuras com responsabilidades no PS e no Governo passem completamente ao lado das interrogações propostas pelo velho senador que, cumulativamente, até foi o candidato às eleições presidenciais de 2006 deste mesmo PS...
A EUROPA, MAIS LONGE DOS CIDADÃOS
por Mário Soares
O Conselho Europeu reunido em Bruxelas para repor em marcha a União Europeia, após os esforços louváveis realizados pela presidência alemã - e pela Chanceler Merkel, em particular - e para deixar um mandato "claro e preciso" à presidência portuguesa, terá sido um êxito, como nos quis fazer crer o habitual marketing político com que geralmente se saldam os conclaves europeus?
Temo bem que não. Tanto quanto compreendi, pela leitura atenta do "Projecto de Mandato da CIG", que encontrei na internet e que não vi transcrito nos órgãos da imprensa internacional que habitualmente leio. O Tratado Reformador, como agora se chama, não é mini nem simplificado, como pretendia o Presidente Sarkozy. É grande, amplo e extremamente complexo.
Começa por repor em vigor os tratados anteriores (que o Tratado Constitucional devia substituir) e compreenderá duas cláusulas substanciais de alteração ao Tratado da União Europeia (TUE) e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), que passará a ser designado (Tratado sobre o Funcionamento da União). Acrescente-se que tanto o Tratado da União Europeia como o Tratado sobre o Funcionamento da União não terão carácter constitucional. A palavra Constituição passará a ser um verdadeiro tabu. Foi em absoluto banida dos dois textos, como uma palavra maldita. A designação de "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União", será substituída também por "Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança". A palavra ministro lembra Governo e Estado e este, para a União, é também tabu. O mesmo se passa com as designações de lei e de lei-quadro, que serão denominadas regulamentos, directivas e decisões. Eis exemplos expressivos de arranjos políticos oportunistas, sem alma nem visão de futuro.
Nesta altura - e estamos no começo do "Projecto de Mandato", que se espraia por 18 longas páginas, de letra miúda - os leitores interessados já estarão confusos e enfastiados. O que acontecerá aos cidadãos comuns europeus que queiram, honestamente, conhecer as regras pelas quais se rege a Europa, em que vivem e em que acreditam?
Note-se que as modificações terminológicas não são nada inocentes. Bem pelo contrário. Representam a expressão acabada do pensamento euro-céptico, anti-europeísta, que tem horror à Europa Política e Social, e vê a União tão só como uma vasta área de livre câmbio, um mercado, com uma política financeira estricta e políticas económica, social e fiscal insuficientemente coordenadas. Que longe estamos da prometida "Europa dos Cidadãos"...
O texto do Mandato, para quem o leia, representa um hábil exercício de hipocrisia política. Transige-se, de forma grave, com o cepticismo britânico, ao fazer desaparecer os símbolos: bandeira, hino, lema, etc. Ora os símbolos são formas essenciais de identidade. Mas os "entendidos" piscam-nos o olho e dizem-nos: "atenção, oitenta por cento do conteúdo, ficou idêntico". Simplesmente isso não está escrito nem será verdade. O que resulta insofismável, é que os governantes europeus, por medo e facilitismo, se recusam a assumir a identidade europeia. O federalismo subentendido no antigo Projecto Constitucional, desapareceu. Como é possível, assim, estimular e desenvolver a cidadania europeia? O fosso entre os cidadãos europeus e as instituições, alargou-se consideravelmente. O que é dramático. Porque daí resultarão, inevitavelmente, consequências negativas que não deixarão de se fazer sentir. Wait and see.
Como poderá a União Europeia tornar-se um protagonista global na cena internacional - como é necessário para o Mundo, que aconteça - se são conscientemente reforçados os poderes dos Estados nacionais (que são quem manda, cada vez com maior dificuldade em encontrar consensos) e esbatidas as competências da União, tornada uma entidade difusa e ambígua, que teme dizer o que seja e para onde caminha? Será isto uma nova forma de "transparência política", de que tanto se reclamam os dirigentes europeus?
E no entanto, todos os Estados europeus sabem - dizem-no - que sozinhos, sejam quais forem, mesmo os maiores, como a Alemanha, não têm peso nem dimensão para poder competir, com êxito, no mundo global dos nossos dias.
No fundo, o que se passou na Cimeira de Bruxelas, foi que dois Estados-membros bloquearam o avanço, tão necessário, da construção europeia: o Reino Unido (que todos sabemos nunca o desejou) e a Polónia (por razões conjunturais, embora usando argumentos inaceitáveis). Estão no seu direito, quanto ao que lhes diz respeito. Mas não de impedir o avanço dos outros. Esse é o ponto.
O motor franco-germânico - que dizem ter-se-á recomposto, oxalá assim seja! - resolveu ceder, à pressão britânica, quando 18 Estados (em 27) tinham já ratificado o Tratado Constitucional e mais uns tantos, entre os quais Portugal e a Irlanda, se preparavam para o fazer. Nem sequer se lembraram de recorrer a uma cooperação reforçada, para aprovar o Tratado Constitucional, para a qual bastariam nove países por exemplo. Realmente - repito - por que razão dois Estados haverão de bloquear os avanços que todos os outros 20 ou mesmo 25 aceitam, com mais ou menos entusiasmo?
Portugal, independentemente da sua vontade, ficou com o sério embaraço do "menino nos braços", isto é: com a responsabilidade de levar a bom termo - e rapidamente - o mandato imperativo que o Conselho Europeu de Bruxelas lhe legou. Espero que não se levantem novas dificuldades (a Polónia já fez veladas ameaças), agora que os anti-europeistas deitam foguetes e se consideram vencedores. Veremos... Portugal vai ainda ter de se ocupar, exaustivamente, das Cimeiras tão importantes previstas para Lisboa: da União Europeia com o Brasil, com a Rússia, com África e outras, para além do seu objectivo de estimular a tão importante "Estratégia de Lisboa". Sem esquecer os imprevistos, que sempre surgem.
Jacques Delors, num artigo que publicou no Nouvel Observateur, escreveu com contida resignação: "A Europa sempre assim caminhou: dois passos para a frente e um para trás". Desta vez, temo que os dois passos para a frente sejam de menor dimensão - e significado político - do que o passo enorme que se deu para trás... Mas, claro, e digo-o como europeista convicto: "atrás de tempo, tempo virá".
A União Política Europeia (com a Turquia, pois claro) é indispensável, representa o projecto político de paz mais original e auspicioso do século XX e para o Séc. XXI e um dia irá afirmar-se, contra os egoísmos nacionalistas de vistas curtas de certos políticos europeus...
Lisboa, 1 de Julho de 2007
quarta-feira, 11 de julho de 2007
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2 comentários:
O artigo de Mário Soares é interessante. No entanto, sempre que se fala de Europa, por parte do arco político que tem mantido uma Europa que não é carne nem é peixe, do qual, apesar de tudo, Mário Soares faz parte, há sempre muito palavriado, muita retórica, mas muito pouco de concreto para se colocar os europeus no centro e como motor da construção europeia. Em momentos solenes, parece que, da direita à esquerda, todos se afirmam "democráticos", "sociais" e até "muito preocupados" com a falta de participação dos europeus nas eleições europeias.
No entanto, parece que , também da esquerda à direita, há temas tabus. Eis alguns:
* Eleição pelos europeus de uma Assembleia Constituinte que redija uma Constituição europeia. Uma Constituição daí resultante representaria uma REFUNDAÇÃO da construção europeia, agora com o contributo dos europeus e não mais a congeminação de comissões de eurocratas não eleitos;
* Criação dos Estados Unidos Europeus na base de uma Federação livre de Estados. Numa perspectiva socialista e na tradição do movimento socialista, logo a seguir ao fim da guerra mundial no século passado, defende-se os Estados Unidos Socialistas da Europa!
* Eleição de um governo europeu por um Parlamento europeu eleito e com poderes revistos e aumentados;
* Definição de um salário minimo europeu como forma de se contribuir para o fim das imensas assimetrias sociais no espaço europeu;
São quatro pontos de que não se fala e muito menos se debate. Novamente da esquerda à direita.
São estes quatro pontos que podem fazer a diferença e provocar a ruptura com as concepções neo-liberais que têm dominado a construção (que tem sido mais desconstrução!...) europeia.
É necessário defender referendos nacionais ao Tratado que querem ressuscitar. Mas os referendos não apontam objectivos, ficam-se pelo "sim" ou pelo "não"!
A esquerda socialista precisa de definir um projecto global para a construção europeia que pretende. Basta de palavreado oco!
JOÃO PEDRO FREIRE
Quando, em matéria de política europeia, um senador da política portuguesa com origem no PS diz o que diz neste artigo, e um Governo PS faz o que faz... fico esclarecido! E não, não me parece que seja "palavreado oco"!
Paulo F. Silva
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